segunda-feira, 31 de março de 2008

AMARGO MEL

Subitamente
a dor fez-se real
e depois de tão longa sonolência
pareceu-nos mais injusta
mais letal
mais crua
nesta nova transparência

Que força nos calou a voz outrora?
Que loucura parou o nosso abraço?
E que ironia transformou agora
neste nó cego
o sempre frouxo laço?

Tardio o olhar aceso
inconfundível
E o toque incandescente
pele na pele
Tardio o gesto novo
irreprimível
Tardia, inútil dor
amargo mel...

terça-feira, 25 de março de 2008

PEDRAS MUITAS

Na pedra mais branca
recosto a cabeça.
Que ninguém me impeça
de ver nela as penas
de mil almofadas.
Marítimas penas
de gaivotas mansas,
rasando enseadas
numa lenta dança.
Que hoje me adormeça
esta luz quebrada,
esta eterna esperança.
Maresias plenas
só o sonho alcança.

Na pedra mais pura
que o vento esculpiu,
encontro o enlace,
revelo o segredo
descoberto a medo
com dedos de frio:
inscrevo-lhe um nome,
como se o calasse.
Se o tempo parasse
agora, o navio
que na noite escura
contigo partiu,
talvez me levasse,
talvez naufragasse
na pedra mais dura
que jamais se viu.

Nas pedras que vejo
descanso o olhar.
Pedras muitas, tantas,
tão silenciosas
e tão preciosas
que só um desejo
as sabe contar.

quinta-feira, 20 de março de 2008

EM SILÊNCIO

Olha-me nos olhos
em silêncio
e diz-me
tudo o que só assim sabes dizer

Deixa que eu traduza
no código que inventámos só para nós
que aboliu as palavras
que nunca teve voz
as vagas de ternura que adivinho
o desejo nunca saciado
a paz de sermos sempre complemento

Em silêncio
porque só assim nos entendemos
só assim nos pertencemos
sem os medos
nem as promessas condenadas
de quem usa palavras
porque não sabe falar de outra maneira...

sexta-feira, 14 de março de 2008

O QUE EU QUERIA DE TI

O que eu queria de ti?
Talvez não muito mais que o que me deste...
Apenas um perfume mais agreste
um ramo de ervas bravas, que não vi

O que esperei em vão?
Quem sabe um pouco menos de certezas...
Ver-te brilhar nos olhos, indefesas
invioladas fontes de ilusão

Eu queria essa aventura de encontrar-te
sem ter de me perder dentro de mim
por labirintos, dúvidas sem fim
Sem ter sequer, amor, de procurar-te

Tão pouco... um gesto só me encantaria!
Tão fácil... bastaria uma palavra!
Mas a terra que sou, ninguém a lavra
sem um arado feito de magia

Guardo de ti o quase que tivemos
esboço de um mais que teimo em alcançar
E digo adeus, por não poder ficar
onde tudo me diz que nos perdemos

segunda-feira, 3 de março de 2008

ETERNOS RITUAIS

Percorro palmo a palmo o teu desejo
e palmo a palmo sinto-me vibrar
Primeiro, na lenta perfeição de um beijo
que nos acende o corpo, devagar
Tão devagar que sinto, mais que vejo
morrer na minha pele o teu olhar

Depois, nas mãos que inventam sabiamente
novos desenhos, esboços delirantes
Perdidos tempo e espaço, de repente
partimos à deriva, viajantes
Somos cinco sentidos, simplesmente
por novas dimensões alucinantes

E assim, de sal e mel embriagados
cumprimos os eternos rituais
E ao som de coros loucos, inspirados
dançamos com o vento nos trigais
Entre a terra e o céu entrelaçados
Senhores do Universo uma vez mais

Por fim, quando o desejo é já cansaço
e voltamos a nós, devagarinho
ancoramos na calma de um abraço
feito de gratidão e de carinho
Mas é prazer ainda quando passo
a mão no teu cabelo em desalinho...

(Les jeux interdits - guitarra e violino)